O hábito de organizar
coleções de objetos de arte, raros ou exóticos, ou de amostras reunidas por
curiosidade científica era comum na Grécia e Roma antigas, segundo referências
que se estendem de Homero (século 9 a.C.) ao ano 125 da Era Cristã, quando
morreu Plutarco. Logo, as coleções se formavam a partir da época helenística, e
daí passaram à Roma do fim da República e do Império. Portanto, é bastante
remoto o gosto de colecionar, especialmente com a preocupação de guardar o
testemunho do passado, em que pudessem ser admiradas e estudadas as coleções de
objetos históricos.
A morte do cangaceiro
Lampião (1898-1938) é um assunto polêmico. Para alguns, revestido de grande
complexidade, de inimagináveis controvérsias. Fato é que o ataque, em 28 de
julho de 1938, da tropa do 2º Batalhão Policial Militar de Alagoas ao
esconderijo Angico, sertão de Sergipe, onde descansavam Lampião, Maria Bonita
(1910-1938) e toda a patota, liquidou 11 cangaceiros no confronto - se é que
houve realmente confronto. Mas qual o destino dos objetos que estavam com os
cangaceiros derrotados em Angico?
Após a refrega, o
jornalista alagoano e redator do periódico carioca A Noite, Melchiades da Rocha
(1899-1996), relata no livroBandoleiros das Catingas as "verdadeiras obras de
arte" que "a polícia alagoana arrecadou na Grota de Angicos".
Tratava-se dos "apetrechos e material de guerra que se encontravam nas
barracas do rústico acampamento do Rei do Cangaço". Algumas dessas peças
se encontram, hoje, no Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, em
Maceió, uma vez que seu acervo reúne objetos e documentos dos mais valiosos
subsídios autênticos, de valor indefinível, dos acontecimentos que envolveram
as volantes e os grupos de cangaceiros no sertão alagoano.
O referido acervo é
constituído por óculos, punhal, cartucheira, chapéu, cantil, armaria, mochilas,
alpercata, colchas, além de uma moldagem da cabeça de Lampião. Além disso, o
acervo possui fotografias, processos jurídicos e diversos bilhetes redigidos
por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e seus livrinhos de oração.
A doação ao Instituto
Histórico de Alagoas dos objetos recolhidos após o combate em Angico foi
realizada por ordem do interventor Osman Loureiro (1895-1979), por meio do
ofício nº 1521, datado de 29 de novembro de 1938, em Maceió, assinado por José
Maria Correia das Neves (1886-1953), então secretário do Interior, Educação e
Saúde do Estado de Alagoas. O aviso da oferenda dos "trophéos pertencentes
ao celerado Virgulino" - palavras de Correia das Neves - mereceu espaço
nas atas das reuniões da instituição cultural.
Atendeu ao pedido do
nobre ministro o interventor alagoano Osman Loureiro, no envio dos apetrechos,
entretanto, a imprensa alagoana alertava em suas manchetes que "após a
exposição, os troféus voltarão para Maceió, para que lhe seja dado o destino
que se resolver". Seguindo no navio Itanagé, em 12 de agosto de 1938, com
destino ao Rio de Janeiro, Melchiades da Rocha levou consigo os referidos
"trophéos" para serem exibidos ao público carioca.
Por sua vez, em reunião
no Instituto Histórico, em 11 de agosto de 1938, o presidente Orlando Araújo
(1882-1953) agradeceu aos sócios Paulino Santiago, Ezechias da Rocha e Théo
Brandão "pelo desempenho cabal da missão que lhes fora confiada, de
conseguir para o Instituto a maquete da cabeça e a indumentária do famoso
Lampião". Em encontro posterior, o secretário perpétuo Luiz Lavenère
(1868-1966) informa que "pedira ao governo do Estado que entregasse ao
Instituto a guarda dos objetos que pertenceram ao célebre cangaceiro, obtendo
promessa favorável ao seu apelo, o que o levou a estranhar que tais objetos
estejam sendo exibidos pelo jornal A Noite, do Rio". Mas o apelo do sócio
foi atendido, conforme atesta em ofício dirigido ao instituto, no qual o
interventor Osman Loureiro se manifestou "anunciando haver providenciado o
retorno a esta Capital dos troféus do bando de Lampião".
Na capital Maceió,
aliás, corriam as primeiras notícias a respeito da modelagem da cabeça de
Lampião, pode-se dizer, executada com esmero pelo escultor Lourenço Peixoto
(1897-1986). Na edição concernente ao dia 6 de agosto de 1938, oJornal de
Alagoas registraria aos
leitores que "por solicitação do Instituto Histórico de Alagoas, o
professor Lourenço Peixoto está modelando em gesso a máscara de Lampião".
Segundo o noticiário, pretendia o "Instituto Histórico reconstituir a
figura do 'Rei do Cangaço', nos mesmos moldes como se pratica nos museus
antropológicos".
Entretanto, Lourenço
Peixoto executou seu trabalho artístico bem antes que o professor Arnaldo
Silveira, docente da renomada Faculdade de Medicina da Bahia, fizesse o
traslado para Salvador apenas das cabeças de Lampião e Maria Bonita. Enquanto
isso, Lavenère, em um resmungo descabido, quis apressar o regresso dos objetos
dos cangaceiros a Alagoas, talvez receoso de que pudessem permanecer no Rio de
Janeiro, por causa da prontidão com que o interventor atendia aos pedidos dos
interessados.
E assim, o Diário
Oficial do Estado publicou, em 1º de dezembro de 1938, o mencionado ofício nº
1.521 ofertando os objetos ao Instituto Histórico, discriminados em inventário
conforme o script. Ao mesmo tempo em que as reuniões na entidade cultural
aconteciam quase vazias, pelo diminuto número de sócios presentes, por outro
lado, a exibição dos objetos capturados em Angico adornava as vitrinas do
museu, atraindo os olhares de jornalistas, letrados e autoridades.
ESPÓLIO CAUSOU INTRIGA ESTADUAL
Ao entardecer do
longínquo maio de 1939, quando uma comitiva, encabeçada pelo secretário Luiz
Lavenère, visitava o museu do Instituto Histórico, por um descuido, notou-se o
sumiço de dois objetos pertencentes a Lampião. O desaparecimento logo provocou
vozerio. A correria e um sentimento de urgência atingiram o esguio Lavenère.
Diante desse incômodo, talvez rememorando o empenho em que pôde triunfar após a
conquista na captura dos objetos - que tudo isso, decerto, seria a maior das
vaidades -, fragilizou-se o destemido secretário. Preocupado com o fato -
ou melhor, o furto -, o próprio Lavenère, na sessão ordinária de 31 de maio de
1939, pedindo para constar na ata "ad perpetuam rei memoriam (para perpétua lembrança)",
solicitou o registro do "desaparecimento de dois anéis que pertenceram a
Lampião, fato ocorrido por ocasião da visita que o exmo. sr. interventor do Rio
Grande do Norte e seu secretário fizeram ao instituto". Os objetos
desaparecidos, provavelmente, seriam as seguintes peças: um anel de ouro com as
iniciais na parte exterior C.V.L. e uma aliança de ouro com a inscrição
"Capitão Lampião", na parte interna, conforme descreve o inventário. Como em qualquer
coleção, o que não faltam são vestígios dispersos e, recuperar a sua história
é, no mínimo, revelador. Do rico acervo do Museu Histórico Nacional, no Rio de
Janeiro, uma peça se destaca, particularmente, pela cadente história de como
ali fora identificada: o vestido de Maria Bonita. Consta nos arquivos do museu
que "o vestido de Maria Bonita foi, de certa forma, 'esquecido' ao longo
do tempo". Mas este "esquecimento" durou somente até o momento
em que um pesquisador, aficionado pelo cangacismo, procurou a instituição. Ele
indagou sobre ali se encontrar a peça pertencente à baiana Maria de Déa ou
simplesmente Maria Gomes Oliveira - nome de nascimento de Maria Bonita (1910-1938)
-, que "teria sido doada ao museu nos anos 70".
Segundo os registros, o
pesquisador "tinha informações precisas e descreveu a peça em
detalhes", desencadeando o "procura daqui, procura dali, [até que] o
vestido foi identificado. Salvo do esquecimento, passou [finalmente] a
constituir uma relíquia" do acervo, o vistoso objeto da mulher que
perambulava sertão adentro. A doação do vestido foi feita pela atriz Nádia
Maria, cujos familiares o receberam por meio do jornalista Melchiades da Rocha,
o qual, por sua vez, foi agraciado pela oferta da vestimenta por intermédio do
aspirante Francisco Ferreira Melo, da Polícia de Alagoas. Com vistas à
preservação da memória regional, essas peças que constituem um expressivo valor
histórico, como resgate de uma época marcada pelo banditismo, continuam a
provocar reflexões sobre as possibilidades e direções relativas aos estudos de
nossa formação e identidade. São fragmentos de uma natureza simbólica num
encontro imaginário, nos quais a memória preservada ocupa espaço nos dias
atuais, em uma época em que as lições do passado são tragadas pelo
esquecimento. Destino inglório, na
vitrina que atenua a luminosidade no Museu do Instituto Histórico e Geográfico
de Alagoas, onde assentam vestígios materiais do cangaço, não para reverência,
mas somente ressoando os ecos da história. ( Matéria e fotos extraídas do sitio Portal Ciência e
Vida ).
https://drive.google.com/file/d/1Qo2PsMa12lIjN9RXpD4z_-alTk-W9l1-/view?usp=sharing
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